John Lennon (1940-1980) tinha um dom para a música que o levou muito mais distante de suas raízes que ele próprio poderia ter sonhado. À frente dos Beatles, alcançou o feito raro de um artista britânico conquistar os americanos com um estilo americano de música, eletrizando adolescentes com uma batida que cruzou continentes, culturas e classes. Mas era também um homem complexo, que teve uma relação conturbada com a família e os companheiros da banda.Eis o perfil que se sobressai do livro John Lennon - A Vida (tradução de Roberto Muggiati, 840 páginas, R$ 69), de Philip Norman, que a Companhia das Letras lança hoje. Um tijolaço que, se não traz nenhuma revelação bombástica, aprofunda questões controversas como a quase relação sexual que manteve com a mãe, a diversão que tirava de deficientes físicos, o uso das drogas iniciado com o baseado fumado com Bob Dylan. Mas também retrata a parceria com Paul McCartney, com quem criou o mais rico acervo existente de músicas universalmente adoradas. Sobre esse homem que foi assassinado à queima roupa, Norman conversou por telefone com o Estado.Você acredita que hoje é mais fácil tratar da intimidade de Lennon?Acredito que sim, pois Lennon teve vários fracassos, praticou algumas maldades, foi um ser humano normal, enfim. E, apesar do enorme talento, era muito inseguro sobre suas capacidades. Toda essa complexidade é mais bem aceita e compreendida nos dias atuais.De que forma Lennon influenciou a cultura do século passado?Na verdade, foram os Beatles, mais que ele, que mudaram enormemente a música popular no século 20. Primeiro na Europa, depois nos Estados Unidos até contagiarem o mundo todo. De um certa forma, era complicado para John ter um lugar fixo entre os Beatles, pois ele tinha muitos outros talentos que não podia usar enquanto membro do grupo. Mas seu filho Sean disse algo com que concordo: Lennon inventou um jeito inseguro de escrever canções, pois não tinha confiança em relação a saber ler e escrever música, que as tornou bem-humoradas, de um jeito ainda pouco conhecido entre os músicos pop, até então muito sérios e controlados. Ele trouxe elementos engraçados que tornaram a música mais engraçada.Yoko Ono foi, de fato, fundamental no processo de pesquisa?Sim, a viúva de Lennon foi muito honesta sobre si mesma, sobre sua relação com John. Mostrou filmes particulares (como a viagem ao Japão) e não escondeu detalhes, agindo de uma forma que, acredito, seria a mesma tomada por John. Confesso ter ficado surpreso com essa atitude e isso deve ter acontecido porque, desde o início, meu propósito foi o de apresentar um retrato fiel de John Lennon.Por que, então, ela desaprovou o livro tão logo foi publicado?Realmente, não sei. No início, amigos próximos a ela leram o livro e aprovaram. Daí minha surpresa com sua reação, pois, durante o processo, Yoko fazia questão de não fugir de nenhum assunto. Acho que ela não gostou do espírito do livro, o que é estranho pois reproduzi a forma de Lennon falar e pensar segundo a forma que ela mesma me passava, uma forma ao mesmo tempo amorosa e exasperada. Ainda tenho esperanças de que ela mude de opinião.Um dos momentos tristes do livro é o que retrata o último encontro de Lennon e o antigo produtor de discos dos Beatles, George Martin. Foi em Nova York, no início dos anos 1970 e, para surpresa de Martin, Lennon disse que, se pudesse, regravaria tudo o que os Beatles fizeram, sobretudo Strawberry Fields.Foi realmente chocante. Martin conhecia bem John Lennon e raramente se surpreendia com suas atitudes, mas essas declarações o deixaram perplexo, especialmente reescrever Strawberry Fields, uma de suas obras-primas. John nunca se satisfez plenamente com nada do que tinha feito e essa é uma das qualidades que o colocam entre os grandes criadores do século passado. Ele realmente não suportava a mediocridade.E o que você diria sobre a disposição de Lennon em explorar o sexo não apenas com mulheres mas também com homens?Bem, é preciso lembrar, antes de tudo, que ele era de fato heterossexual - John gostava realmente de mulheres. E, durante a fase dos Beatles, nenhum deles podia ter algum affair por conta da má publicidade. O que acontecia, então, eram encontros fortuitos em banheiros de hotel. Mas Brian Epstein, o primeiro empresário da banda, era gay e apaixonado por John, que soube aproveitar disso em determinados momentos - como quando garantiu a Epstein que iria até o fim para que ele aceitasse ser o manager do grupo. Mesmo entendendo o recado, Epstein não quis se aproveitar da situação. Há também a história de um desejo de John por Paul McCartney, que não vingou porque Paul se interessava apenas por mulheres. Por fim, sua paixão por Yoko Ono, cujos traços são um tanto masculinos. Enfim, há diversas evidências mas nenhuma verdade. Durante os anos 1970, quando as fronteiras sexuais existiam para ser derrubadas, John gostava de dizer que gostaria de ter duas relações com outro homem: a primeira como descoberta e a segunda para ter a certeza de que não gostava. Ringo Starr sempre foi a figura mais apagada dos Beatles, não?Sim, mas John Lennon gostava muito dele. Ringo sempre foi uma pessoa muito agradável, com um constante bom humor e um comportamento normal. Era disso que John mais precisava: ele dependia dessa maneira honesta de Ringo. E, mesmo depois da separação do grupo, John se preocupava com aquele sujeito simples e descontraído que sempre o ajudara a se manter na linha. Você sabia que...... o segundo nome de Lennon, Winston, era em homenagem ao primeiro-ministro Winston Churchill?... o nome Beatles nasceu de uma ideia de Stuart Sutcliffe, o Stu, baixista da primeira formação da banda, que queria algo despretensioso?... Lennon faz a voz de fundo na canção All You Need Is Love, no coro de She Loves You?... Paul McCartney compôs Hey Jude para confortar o filho de Lennon, Julian, logo após a separação dos pais?... Yoko Ono era uma companheira tão inseparável que, durante as gravações do Álbum Branco, acompanhava Lennon até quando ele ia ao banheiro?... a canção Sexy Sadie era uma crítica ao guru Maharishi Mahesh Yogi que, por ter rompido o celibato com uma moça americana, irritou profundamente Lennon?... Lennon tinha tanto medo de que seu filho Sean fosse sequestrado que não deixou ser publicada nenhuma foto dele na imprensa?... ele foi declarado oficialmente morto às 23h07 do dia 8 de dezembro de 1980, minutos depois de levar cinco tiros de Mark Chapman?
O Estadão